O meu Artigo publicado no Jornal Expresso: Os Direitos da Criança no Ambiente Digital. Um Caminho em sentido Único!

VER AQUI Começo com a seguinte reflexão: como interpretar e implementar os direitos da criança previstos na Convenção dos Direitos da Criança, adotada em 1989, um ano antes do nascimento do chamado “boom da internet”, nesta era de profunda mediatização em que vivemos? Estamos a falar de direitos como a proteção contra todas as formas de violência, a privacidade, a educação, a saúde, a participação, a liberdade de expressão e de associação, o acesso à informação e a conteúdos mediáticos que beneficiem, enriqueçam e promovam o bem-estar das crianças.

Embora a Internet, os dispositivos utilizados para aceder a ela e os serviços hoje disponíveis não tenham sido criados especificamente para as crianças, a investigação mostra que estas são cada vez mais utilizadoras de peso:  1 em cada 3 utilizadores de internet à escala global é uma criança, ou seja, 71% dos conectados em todo o mundo são jovens entre os 15 e os 24 anos, em comparação com 48% da população total (UNICEF, 2017). Na União Europeia, vemos que 94% jovens utilizaram a Internet diariamente, em comparação com 77 % de toda a população (Eurostat, 2019).

Reconhecendo que a rápida evolução do mundo digital pode afetar, de maneira negativa ou positiva, os direitos das crianças, o Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, adotou em fevereiro, o seu há muito aguardado Comentário Geral nº 25 sobre “Os Direitos da Criança em relação ao Ambiente Digital”, que vem explicar como os Estados, mas também as empresas prestadoras de serviços digitais, devem implementar os direitos previstos na Convenção em relação ao ambiente digital, estabelecendo orientações em relação à forma como o ambiente digital e os direitos da criança interagem entre si, e como melhor respeitar, proteger e cumprir esses direitos no ambiente digital (Par.7). 

É o resultado de três anos de intenso trabalho que contou com a participação da Fundação 5Rights na redação deste Comentário. Na sua elaboração estiveram envolvidos 40 Estados, centenas de organizações, mais de 700 crianças e 50 especialistas de 28 países. 

Um documento histórico pelo impacto que representa nos deveres e obrigações dos Estados na sua transposição e aplicação.

Torna-se evidente logo no início do Comentário Geral que o Comité está perfeitamente consciente dos debates polarizadores sobre a tecnologia, afirmando que o ambiente digital “oferece novas oportunidades para a realização dos direitos das crianças, mas também apresenta o risco da sua violação e abuso” (par.3). Vemos que se procurou dar resposta a questões por vezes controversas e politicamente ainda pouco consensuais em matéria de segurança das crianças no ambiente digital, como encriptação ponto-a-ponto, “sharenting”, publicidade comercial dirigida, o abuso e exploração sexual de crianças on-line e a proteção da saúde das crianças. São apresentados, por exemplo, os riscos relacionados com conteúdos violentos e sexuais, ciberagressões e assédio, jogos de azar, exploração e abuso, incluindo a exploração e abuso sexual e a promoção ou incitação ao suicídio ou a atividades que ponham em risco a vida e o seu impacto no direito da criança à vida e à sobrevivência (par.14). É dada também atenção os riscos relativos à violência contra crianças e à exploração infantil (VII e XII, A) e aos potenciais danos que podem advir para as crianças através do seu envolvimento com o ambiente digital, e salienta a necessidade de os Estados assegurarem a implementação de “medidas de segurança e proteção de acordo com as capacidades de desenvolvimento das crianças” (par.82). 

Acresce que este Comentário Geral é adotado numa altura em que a Covid-19 trouxe as questões do ambiente digital mais ainda para a ordem do dia, em consequência das medidas de isolamento e o encerramento das escolas com impacto em mais de 1,5 bilhão de crianças e adolescentes em todo o mundo. A Internet é já uma segunda casa para eles, com a utilização massiva de ferramentas, sistemas e plataformas digitais, que vão desde o acesso à educação até à socialização. Aceder, usar, produzir, partilhar e conversar sobre e através dos media tornou-se uma forma básica de socialização das crianças e adolescentes. 

Esta maior dependência também vem expor as crianças ao risco de diversas formas de violência, exploração e abuso e tornou evidente a “divisão digital” existente e as desigualdades profundas. A necessidade de se assegurar medidas que promovam a inclusão digital, a fim de evitar o aumento e o surgimento de novas desigualdades (par.4) é outra das medidas apontadas. Estas desigualdades relacionam-se não só com o direito à educação (parágrafos 99-105), como tem sido amplamente discutido durante a pandemia, mas também se relacionam com o direito da criança a brincar, uma vez que as “brincadeiras” são fundamentais para o bem-estar e desenvolvimento das crianças (par.106).

Podemos afirmar que o impacto positivo ou negativo destas tecnologias, que estão longe de ser neutras, não pode ser desvalorizado, merecendo a atenção dos vários intervenientes na proteção dos direitos das crianças, como os pais e professores, mas também as empresas e os decisores políticos, exigindo-se que estes últimos tomem decisões e definam políticas que respeitem, protejam e cumpram os direitos das crianças no ambiente digital. A ação ou inação nesta área terá́ implicações no modo como são garantidos os direitos da criança, como ela os exerce nos ambientes digitais e como estes promovem, ou não, o seu bem-estar.

Isto significa, como refere o Comentário Geral, que a gestão do ambiente digital deve ser assegurada tendo como principal preocupação o interesse superior da criança (par.12), garantindo-lhe o apoio e orientação adequados sobre os riscos relacionados com o ambiente digital, e tendo em conta as suas capacidades, desenvolvimento e maturidade. O respeito pelo direito da criança a ser ouvida (artigo nº12 CRC) não deve resultar num “controlo indevido” da utilização da tecnologia e do ambiente digital pelas crianças (par.18). É necessário procurar um equilíbrio entre o direito à proteção e o direito à participação, para que as medidas tomadas em relação ao primeiro não limitem as possibilidades do segundo. Do mesmo modo, devem ser asseguradas orientações em relação ao tempo de utilização e conteúdo dos jogos digitais, auxiliando os pais a identificar tendências de uso excessivo pelas crianças. O desenvolvimento de competências e literacia digitais nas crianças, assim como a identificação de potenciais riscos do ambiente digital, devem ter o apoio dos pais e professores, de forma a encorajar autonomia, desenvolvimento e segurança das crianças (parágrafo.108) no ambiente digital. Por seu turno, cabe aos Estados a responsabilidade de criarem sistemas que visem dotar as crianças e os jovens de competências adequadas e garantir-lhes um acesso esclarecido ao meio digital realçando-se, neste contexto, a importância de integrar a literacia digital em todos os níveis da educação formal e não formal, incluindo uma abordagem de aprendizagem ao longo da vida

O Parlamento alemão já iniciou esta caminhada, ao aprovar no mês de março, uma Lei sobre a reforma da proteção das crianças e jovens no ambiente digital, tornando-se o primeiro país a incorporar as orientações do Comentário Geral no seu ordenamento jurídico, dando especial destaque, por exemplo, à participação das crianças no Conselho Consultivo da futura Agência Federal para a proteção das crianças e jovens no ambiente digital, a par de outras iniciativas dirigidas não só aos pais e professores, mas também às empresas.

Por seu turno, da União Europeia (UE) chegam sinais contraditórios. Por um lado, temos uma aposta na transformação digital da Europa até 2030, com o lançamento, em março, da Década Digital da Europa – 2030, onde são definidos direitos e princípios digitais, figurando nestes últimos, a proteção e capacitação das crianças no espaço on-line. Mas, por outro lado, vemos que tarda um acordo no Parlamento Europeu em relação a aprovação da derrogação temporária de uma cláusula da Diretiva da Privacidade Eletrónica, para que assim sejam reativadas ferramentas que eram usadas na deteção de conteúdos relativos à exploração e abuso de crianças on-line usadas por várias empresas prestadoras de serviços de comunicação online, como o FacebookInstagram, devido às novas disposições introduzidas no Código Europeu das Comunicações Eletrónicas, em Dezembro de 2020.

Daí ser cada vez mais necessário a existência de um quadro de direitos e de governação na UE que resolva a fragmentação das disposições relativa à proteção das crianças no mundo digital, presentes atualmente no campo dos direitos humanos, da proteção da privacidade, da luta contra o abuso sexual, dos serviços de comunicação audiovisuais e do comércio eletrónico. O artigo 24.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia defende que as políticas relativas à criança apresentem uma abordagem holística: é, pois, necessária, uma diretiva-quadro que integre e regulamente todas estas matérias e uma governação transversal que promova uma abordagem harmonizada nos Estados -Membros e incentive uma coordenação mais forte entre estes e a UE.

Queremos um caminho em sentido único! As crianças constituem um grupo específico que exige atenção: o modo como as crianças se comportam hoje online ajudará a definir o mundo digital de amanhã. Isto significa que não são necessárias mais orientações, além das que já temos, mas sim mais ações prioritárias que reconheçam a responsabilidade dos vários intervenientes em particular dos Estados, mas também das empresas, em proteger as crianças face aos perigos do ambiente digital, e ajudando-as a beneficiar da promessa de conectividade. 

Odete Severino Soares.

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