O meu artigo publicado no Jornal Expresso “O Direito de Participação das Crianças em contexto de pandemia: realidade ou utopia”

Artigo publicado no Jornal Expresso no dia 14.07.2021. Ver aqui

Não me sai do pensamento a frase que li recentemente no romance de Oscar Wilde “O retrato de Dorian Gray” que diz que “Para testar a verdade devemos vê-la sobre uma corda bamba. Quando as Verdades se tornam acrobatas, nós podemos julgá-las”. Porquê? A razão prende-se com o facto desta citação traduzir na perfeição o momento atual em que se encontra a Convenção sobre os Direitos das Crianças das Nações Unidas. Como? A resposta é simples, após 32 anos desde a sua adoção, em 1989, a crise pandémica veio colocar à prova a capacidade de resposta dos países à escala global em relação às três categorias de direitos consagradas na Convenção, os chamados três “Ps”: provisão, proteção e participação. 

Para isso é importante ter presente que os direitos de provisão ou direitos sociais, são os serviços básicos que qualquer sociedade deve garantir às suas crianças, tais como os direitos à saúde, à assistência social, à educação, à habitação, ao recreio, ao lazer e cultura, entre outros; por sua vez, os direitos de proteção implicam que se  dedique uma atenção reforçada às crianças, que, por motivos diversos, nomeadamente situações de discriminação, abuso físico e sexual, exploração, injustiça, conflito, se encontram privadas ou limitadas no exercício dos seus direitos. Não menos importantes são os direitos de participação, associados a uma imagem de infância ativa, com garantia dos direitos civis e políticos, como o direito da criança a ser consultada e ouvida, o direito ao acesso à informação, o direito à liberdade de expressão e opinião, e o direito a tomar decisões em seu benefício.

O cenário que se segue sujeita a Convenção a uma prova de fogo sem precedentes. Passado um ano desde que a OMS classificou a COVID-19 como uma pandemia, sabemos que esta tem tido consequências sociais e económicas devastadoras em todo o mundo, afetando sobretudo as crianças. Os indicadores que medem o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes regrediram, segundo dados recentes da UNICEF, com um evidente retrocesso nas medidas de bem-estar, de saúde, de educação e sustentabilidade que afetam diretamente a já chamada “Geração C” (Geração COVID-19), que abrange as crianças afetadas pela pandemia. 

Olhando para os dados, vemos que nos países em desenvolvimento a pobreza infantil aumentou 15% e que cerca de sete milhões de crianças podem ter sofrido de subnutrição em 2020, significando um aumento de 14% que se pode traduzir em mais de 10 mil mortes adicionais por mês, principalmente na África subsaariana e no sul da Ásia. A acrescentar a estes dados, estamos a assistir a uma crise profunda na educação. Há quase um ano que as escolas encerraram para mais de 1,5 mil milhões de crianças, e um terço destes alunos (463 milhões crianças em todo o mundo desde a pré-escola até ao ensino secundário) não têm acesso ao ensino online em consequência das desigualdades no acesso às tecnologias de informação. A propósito desta situação, em outubro de 2020, a UNICEF, a UNESCO e o Banco Mundial apresentaram um estudo global sobre as políticas educativas de 149 países, onde se mostrava que as crianças dos países mais pobres perderam com a pandemia 4 meses de escolaridade enquanto os países mais desenvolvidos este número desceu para 1 mês. E um dos motivos foi o acesso a computadores e outros dispositivos de educação a distância. 

A estes números juntam-se os dados do relatório da OIT e UNICEF, apresentado no passado mês de junho, que apontava para 160 milhões de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil em todo o mundo entre 2016 e 2020, significando um aumento de 8,4 milhões nos últimos quatro anos, prevendo ainda que até 2022 outros 8,9 milhões corram o risco de cair nessa situação devido aos impactos da Covid-19. Cenário semelhante é o aumento do número de casos de abuso sexual online de crianças durante o período de confinamento segundo dados da Europol e da Polícia Judiciária, em consequência de as crianças passarem mais tempo ao computador, sem a supervisão dos pais, e de os próprios adultos em teletrabalho estarem menos protegidos relativamente a ataques informáticos, através dos quais podem ser roubadas imagens e informação sobre os filhos, para uso posterior pelos pedófilos. 

A par desta situação, a pandemia trouxe também para a discussão várias outras questões que até então não tinham sido motivo de preocupação geral, como a saúde mental: uma em cada sete crianças ou adolescentes em todo o mundo passou a maior parte do ano passado em confinamento, o que aumentou os sintomas de ansiedade, depressão e isolamento.

A concretização do interesse superior da criança passa também por assegurar o seu direito à participação em todos os assuntos que lhes dizem respeito, nos seus diferentes contextos. Devemos analisar esta questão como sendo um elemento essencial para o exercício da cidadania e do desenvolvimento das próprias crianças. Permitindo a sua participação, estamos a assegurar que os seus direitos e as suas necessidades são tidos conta nas respostas à crise sanitária, podendo mesmo contribuir para soluções mais duradouras em relação aos desafios que se avizinham no período de recuperação. 

Antes da pandemia, a tendência registada mostrava que o direito de participação das crianças estava a ganhar progressivo reconhecimento e visibilidade em diversos domínios e em diferentes âmbitos, como na vida familiar, na comunidade, na escola, no processo de decisão pública e no ativismo juvenil. Por isso, a questão que se coloca agora é saber se houve também um recuo neste domínio, em resultado das medidas extraordinárias tomadas pelos Países. Logo no início da pandemia, o Comité dos Direitos da Criança da Nações Unidas (CDC) alertou para a obrigação dos Estados assegurarem a participação das crianças nas medidas a adotar em resposta à COVID-19. 

Dos dados disponíveis percebe-se que esta dimensão foi claramente negligenciada nas medidas adotadas pelos países em resposta à crise. É disso que nos dá conta o Relatório da Agência Europeia dos Direitos Fundamentais de 2021 referindo que as medidas extraordinárias adotadas pelos Estados para conter ou mitigar os efeitos da crise sanitária apenas visaram assegurar os direitos de provisão e proteção, esquecendo o direito à opinião e participação das crianças. Tal significou que as medidas se concentraram no aumento das respostas de proteção social para garantir as necessidades das crianças e das suas famílias, incluindo o apoio ao rendimento, a alimentação escolar e/ou serviços de substituição, cuidados infantis, cuidados de saúde, e perdões de dívida para a utilização de serviços básicos, arrendamento e/ou hipotecas. A par destas, foram adotadas medidas de combate às desigualdades provocadas pelo ensino à distância, assim como de proteção das crianças perante situações de risco de negligência, abusos, maus-tratos e violência.

Passados três décadas, o direito de participação das crianças em todos os assuntos que lhes dizem respeito continua à procura de bússola para indicar a direção certa e por isso continua a constituir um desafio. Mas afinal do que se trata este direito? É um direito humano universal e está relacionado com a prática de uma cidadania ativa, como refere o Professor José Manuel Sarmento da Universidade do Minho. A criança é, assim, encarada como tendo competências, voz e ação próprias. Segundo a CDC, as crianças têm o direito de expressar a sua opinião e exercer influência em todos os assuntos que lhes dizem respeito, nos seus diferentes contextos. Trata-se, assim, de dar a cada criança, independentemente da sua idade ou características individuais, a oportunidade de ser ouvida e de ver as suas opiniões serem tidas em conta. É útil reiterar que a participação da criança inclui não só a consulta, mas também o acompanhamento do desenvolvimento e avaliação dos assuntos que lhe dizem respeito, a par da existência de estruturas/mecanismos adequados que possam assegurar uma participação efetiva. 

Em março deste ano, a Comissão Europeia realizou dois estudos, cujos resultados são bem ilustrativos do que pensam as próprias crianças e das estruturas/mecanismos existentes na UE. No primeiro “Our Europe, Our Rights, Our Future” que contou com a participação de 10.000 crianças entre os 11-17 anos de todos os países da UE, as crianças referem que querem ser ouvidas e que a sua opinião seja respeitada no processo de decisão em relação aos assuntos que lhes dizem respeito. Têm uma opinião negativa em relação aos adultos com poder e aos políticos por não respeitarem a sua opinião, a par de outros profissionais, como os assistentes sociais, a polícia, e os profissionais que trabalham nos tribunais. Pelo contrário, os pais e os professores aparecem como aqueles que tendem a respeitar/aceitar melhor a sua opinião. Uma das crianças portuguesas que participou neste estudo refere mesmo “alguns adultos pensam que a respetiva opinião é a correta e por isso não respeitam nem ouvem o que temos para dizer”. 

Por sua vez, no segundo estudo sobre a participação das crianças na vida política e democrática, com a participação de 224 crianças, as estruturas/mecanismos predominantes de participação nos Estados-membros resumem-se a conselhos, parlamentos de crianças e jovens e provedores e/ou equivalentes. A sua ação centra-se em propor atividades, esquecendo o respetivo desenvolvimento e avaliação. São constituídos na sua maioria por crianças a partir dos 12 anos, sem a presença de crianças em situação de pobreza e exclusão.

É evidente que precisamos de investir, mas também de melhorar a qualidade da participação das crianças e jovens, através de um plano e quadro jurídico que assegurem a participação das crianças nos processos de decisão relativos às políticas públicas; de formação adequada dos adultos e das próprias crianças; da criação de espaços seguros e promotores da participação que pode passar por plataformas digitais; do investimento de recursos em estruturas/mecanismos de participação; do envolvimento das crianças nos processos de decisão em todos os assuntos que lhes dizem respeito, nos seus diferentes contextos; da publicação de informação e documentos em linguagem acessível; da prestação de contas em relação aos resultados dos processos de consulta realizados; e do incentivo e apoio a atividades/ações levadas a cabo pelas próprias crianças.

Como nota final, o direito à participação das crianças será uma utopia se teimarmos em não acertar os pontos cardeais da nossa bússola para que se torne uma realidade. Quer isto dizer, segundo o CDC, que este Direito: é uma liberdade – e não uma obrigação – porque é fruto da vontade de cada um; é universal, devendo ser aplicado a todos sem discriminação e em todos os contextos (escola, comunidade, família, nacional e mundial); é em si mesmo um fim, servindo para exprimir uma visão própria, mas é também um meio porque contribui para outros direitos, como a saúde e educação; é fonte de segurança porque gera a oportunidade de tomar consciência e denunciar situações de violência, abuso, ameaça, injustiça; é poder/ empoderamento porque cria oportunidades de desenvolvimento de competências (responsabilidade ética, envolvimento cívico), sentimentos (respeito pelos outros e bem comum, autoconfiança, pertença) e experiência.

ou realidade.

Partilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *