As alterações climáticas são uma violação dos Direitos da Criança: precisamos de um esforço global partilhado

Odete Severino Soares, artigo Jornal Expresso (ENG Version) Umas horas depois da tomada de posse da nova Administração americana, o Presidente Joe Biden assinou um decreto sobre o regresso do país ao Acordo de Paris, assumindo “vamos lutar contra as mudanças climáticas como nunca fizemos antes”. Esta decisão foi saudada pelos principais líderes mundiais, incluindo o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, que já havia pedido a definição de metas novas e “ambiciosas” para 2030 por ocasião da Cimeira da Ambição Climática, em dezembro, que coincidiu aliás, com o 5º aniversário daquele Acordo, apelando aos líderes mundiais que fizessem o que é necessário para garantir um futuro aos seus filhos e netos, dado que o mundo “ainda não está no caminho certo” para travar as alterações climáticas.

Esta mensagem já reiterada em outras ocasiões, tem vindo a encontrar eco no crescente movimento de crianças e jovens em todo o mundo, incentivado pela jovem ativista sueca Greta Thunberg, de reivindicação juntos dos governos de todo o mundo, de tomada de medidas urgentes para combater as alterações climáticas. Raramente consideramos esta questão como uma violação dos direitos da criança tal como consagrados na Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas (CRC), que os Estados parte se comprometeram cumprir aquando da sua ratificação. Nenhum país está a cumprir a obrigação de garantir à geração mais nova um futuro sustentável, mas são os países mais pobres os que têm mais dificuldade em garantir vidas mais saudáveis às suas crianças, conforme consta das conclusões do relatório de 2020 “Um futuro para as Crianças do Mundo?” da UNICEF, OMS e da Publicação The Lancet.

Os números não enganam. A OMS refere que 1,7 milhões de crianças morrem a cada ano devido a danos resultantes da degradação ambiental. Com o avanço das alterações climáticas, este número aumentará drasticamente. Até 2050, espera-se que mais 24 milhões de crianças sejam afetadas pela crise climática.Anualmente, 600.000 crianças morrem como resultado da poluição do ar e 800 milhões são envenenadas com chumbo, metal pesado altamente tóxico com impacto irreversível na saúde e desenvolvimento das crianças uma vez que as consequências nefastas acompanham as crianças ao longo das suas vidas. 

Este quadro contrasta com a melhoria registada nas últimas décadas nos cuidados de saúde, nutrição, educação, que estão agora em sério risco de começar a regredir, em grande parte, devido às alterações climáticas, agravados pela atual crise pandémica que ameaça os direitos fundamentais, colocando em risco o futuro de todas as crianças do mundo. Exige-se, por isso, que os países tomem medidas urgentes colocando as crianças/jovens no centro das suas políticas nacionais ambientais e contribuindo para o esforço global partilhado de permitir que eles tenham acesso aos seus direitos agora e a um planeta habitável nos anos que se seguem.

O relatório “UN75 The Future We Want, The UN We Need”, lançado em setembro 2020 pela Nações Unidas por ocasião do 75º aniversário em resultado de uma consulta global, refere que as crianças e jovens identificam a crise climática e a destruição do meio ambiente como a principal ameaça para o presente e futuro do planeta.

Percebe-se que a União Europeia (UE) começa a assumir um papel importante neste âmbito, ao ter chegado a um acordo nas vésperas da Cimeira da Ambição Climática para reduzir as emissões de gases com efeito estufa do bloco em pelo menos 55% até ao final da década, um ano depois do anúncio do Pacto Ecológico Europeu, programa que visa nortear a transição para uma economia mais verde. A decisão enquadra-se na Lei do Clima para vincular juridicamente os 27 Estados-membros à obtenção da neutralidade carbónica até 2050. 

É necessário mais.  Passa também pela UE e os seus Estados-membros colocarem as crianças/jovens no centro das políticas ambientais europeias e nacionais relativas ao desenvolvimento, ambiente e redução do risco de catástrofes. 

Por outro lado, e segundo o Relator das Nações Unidas para os Direitos Humanos e Ambiente, os países deverão assegurar uma coordenação transversal dos compromissos assumidos, no âmbito do Acordo de Paris e da Agenda do Desenvolvimento Sustentável, a par dos que estão previstos na CDC definindo uma abordagem integrada que respeite os direitos das crianças. Mais, é fundamental garantir a participação das crianças no processo de decisão em matérias de ambiente através de mecanismos consultivos e educação ambiental adequados, além de garantir que as crianças têm acesso à efetiva remediação da ação ou inação dos danos ambientais causados, incluindo por parte das empresas. Por último, é importante melhorar o conhecimento da relação entre as alterações climáticas e os direitos da criança através da recolha de dados desagregados, realização de estudos de impacto e promoção da cooperação intersectorial com a existência de mecanismos de consulta e reporte.

A CDC é dos poucos instrumentos de direitos humanos que exige explicitamente que os Estados tomem medidas para proteger o ambiente (artigos 24 e 29), assegurando o direito da criança ao gozo do mais elevado nível de saúde e educação. Por sua vez, o Acordo de Paris, aponta (preâmbulo) o compromisso dos Estados de respeitar, promover e ter em conta as respetivas obrigações em matéria de direitos (…) das crianças, quando tomarem ações em matéria de alterações climáticas.

As obrigações dos Estados em relação ao ambiente aplicam-se de forma particular aos direitos das crianças, pelo facto de estas estarem especialmente vulneráveis aos danos ambientais e frequentemente incapazes de protegerem os seus próprios direitos. Este cenário de urgência de atenção e ação por parte Governos tem sido matéria crescente das sessões periódicas de revisão dos compromissos das obrigações dos países perante a Convenção por parte do Comité dos Direitos da Criança das NU, estando inclusivamente em elaboração um novo Comentário Geral. 

A crescente mobilização e participação de crianças e jovens na defesa do direito a um ambiente saudável, como forma de garantir um ambiente mais sustentável às gerações futuras, é, pois, irreversível e os Governos e as Instituições devem estar preparados para dar resposta efetiva às suas exigências. Exemplo disso, são as duas queixas internacionais apresentadas por dois grupos de crianças que protestam contra a falta de ação governamental na crise climática em clara violação dos seus direitos fundamentais, no primeiro caso, em 2019, junto do Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, e no segundo caso, em 2020, perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, por um grupo de seis crianças e jovens portugueses contra 33 países (todos da UE, incluindo Reino Unido, Turquia e Ucrânia). A apresentação do processo ocorre depois de Portugal ter registado o mês de julho mais quente em noventa anos. Quatro dos jovens vivem em Leiria, uma das regiões mais afetadas pelos incêndios florestais que mataram mais de 120 pessoas em 2017; os outros dois vivem em Lisboa onde, durante o mês de agosto de 2018, foi estabelecida uma temperatura recorde de 44 graus.

Sendo Portugal um dos países visados julga-se fundamental que sejam dados passos visíveis no sentido de colocar os direitos das crianças no centro das políticas nacionais ambientais, dando um claro exemplo aos seus parceiros europeus e mundiais, de querer contribuir para que as crianças portuguesas tenham acesso aos seus direitos agora e a um planeta habitável nos anos que se seguem. 

Para começar, o projeto de Lei de Bases sobre o Clima, em discussão na Assembleia da República, será uma oportunidade perdida se os direitos fundamentais, em geral, e os direitos das crianças, em particular, não forem um vetor transversal do diploma, o que atualmente ainda não acontece!

Não restam dúvidas. A relação entre o direito ambiental e os direitos humanos, nomeadamente das crianças, é evidente, seja pelo seu conteúdo, seja pelo simples facto de que a degradação ambiental gera violações de Direitos Humanos. Percebemos que o direito ambiental e os direitos humanos se fortalecem mutuamente e, em última análise, não pode um existir sem o outro. 

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