Artigo “Para uma Justiça Amiga das Criança” publicado no Jornal Expresso

Partilho o meu artigo sobre “Para uma Justiça Amiga das Criança”, publicado no Jornal Expresso do dia 23/12/2021.

Comemorámos recentemente o 32.º aniversário da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas que veio concretizar uma nova conceção de criança, transformando a de ser passivo em sujeito de direitos, com permanente respeito pelo seu superior interesse e valorizando a sua participação nas decisões que lhe dizem respeito. 

No artigo 12.º desta Convenção é determinado o direito da criança a ser ouvida e a expressar a sua opinião, tendo em consideração a sua idade e maturidade, devendo ser “assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos”, não estando assim dependente de uma definição de idades ou sequer competências das crianças, mas antes da capacidade de estas formularem as suas próprias perspetivas, opiniões e/ou conhecimentos. 

Falar de “Justiça Amiga da Criança” é ter por referência as “Diretrizes do Comité́ de Ministros do Conselho da Europa, de 2010, cujo objetivo principal é construir uma justiça que respeite a criança enquanto sujeito de direitos, que a informe, que a escute e que tenha em consideração a suas opiniões. Falamos de todas as crianças que se encontrem em relação direta ou indireta com os sistemas de justiça, designadamente na qualidade de vítimas, testemunhas ou acusadas, ou de destinatárias de decisões relacionadas, por exemplo, com as responsabilidades parentais, em caso de divórcio ou maus-tratos. Por outro lado, este modelo deverá ser aplicado de forma transversal a todos os processos que envolvam crianças independentemente da sua natureza, seja esta cível, criminal ou administrativa e acompanhar a criança desde o início do processo judicial, perdurando para lá do seu termo. 

Num relatório da Agência dos Direitos Fundamentais da UE sobre a justiça amiga das crianças, de 2015, é referido que cerca de 2,5 milhões de crianças participam anualmente em processos judiciais em toda a UE, quer na qualidade de vítimas, testemunhas ou acusadas, quer na qualidade de destinatárias de decisões relacionadas, por exemplo, com as responsabilidades parentais, divórcio, casos de maus-tratos.

Das várias recomendações do relatório e em completa sintonia com as aquelas Diretrizes, destacam-se, por exemplo, a necessidade de criar condições para que a criança seja sempre ouvida, a existência de formação especifica para os profissionais que trabalham com crianças, a existência de salas adaptadas para audição, a garantia do direito à informação da criança durante todo o processo, o seu acompanhamento por pessoa de confiança, a gravação das audições e o direito à não discriminação. 

Em Portugal, o princípio da audição e participação da criança está devidamente consagrado na legislação nacional, designadamente em matéria de adoção, no âmbito dos processos tutelares cíveis e dos processos de promoção e proteção, onde se reconhece às crianças o direito a serem ouvidas, a expressar livremente a sua vontade e a que as suas opiniões sejam tidas em consideração. A legislação só obriga os tribunais a ouvir as crianças a partir dos 12 anos, antes disso não há um limite de idade rígido, garantindo-se a audição de toda e qualquer criança sobre as decisões que lhe digam respeito, atenta a sua capacidade de compreensão dos assuntos em questão, cabendo ao juiz decidir ouvir ou não. 

Os constrangimentos surgem na efetivação desse direito, dado que este ainda não foi totalmente interiorizado pelos operadores judiciários e nem garantido na prática judiciária, seja simplesmente porque a criança não é ouvida, seja porque não estão criadas as condições adequadas à participação e audição da criança.

Num estudo realizado às comarcas de Vila Real, Bragança, Braga e Viana do Castelo, a investigadora Helga Castro, da Universidade do Minho, conclui que só um quinto das crianças teve oportunidade de se expressar nas seções de família e menores, ou seja, num total de 728 crianças envolvidas nos 446 processos judiciais analisados relativos a 2014/2015, apenas 21% são participantes em 34% dos processos englobados na amostra. O estudo mostra que os espaços não estão adaptados às características das crianças. Nas comarcas analisadas, nenhuma das seções tinha salas adaptadas. 

O Centro de Estudos Judiciários tem vindo a desenvolver um trabalho importante nesta área da formação dos magistrados judiciais e do Ministério Público, de forma a evitar que as abordagens e procedimentos a adotar em relação à decisão de ouvir ou não uma criança, não variem de tribunal para tribunal, de região para região, consoante as competências, a sensibilidade e a disponibilidade dos magistrados.

Que sejam então criadas as condições necessárias na prática judiciária, para garantir o direito das crianças à participação efetiva nas decisões que lhes digam respeito, o que implica a transformação do atual sistema de justiça num sistema mais amigo das crianças.  

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